Thursday, April 09, 2009

Poemas de A Salvação pelo Vazio ( 2005 )





Gruta Chauvet (França)


1



Com a mão já fora da vida
Aguardam ainda por uma hipotética salvação pelo vazio,
Entretanto vão escrevendo em copas espessas de silêncio
Altíssimo e escuro,
E sabem que não lhes resta doravante ser senão mão condenada a tactear pelo visível restante tempo apenas do regresso de correlata mão fora da morte.
E de ambas uma agora dentro da outra
Floresce por fim inteira
Inominável prece a uma só mão.

2


Mãos pacientes
Nos confins dos mortos eleitos ainda por nascer
E erguidas à altura de uma voz sem boca
Se revezam de madrugada em carne viva;
Haver sempre a quem deixar o testemunho de um derradeiro olhar nítido das coisas
Sem nenhuma palavra de permeio.


Brancusi
3


De herança apenas duas chaves,
Verdadeira uma,a outra falsa.

Uns ,vencendo iniciais resistências
Experimentam em portas,
Outros,em corações;
Outros ainda,tomados por um súbito temor,
Nada tentam e dedicam-se agora a esquecê-las.
Há ainda aqueles que as experimentam em si próprios,
Com a falsa julgar-se-ão eternos,
Com a verdadeira simples deuses no exílio.
Tudo obedece porém a um conjunto sequenciado
De algumas operações em diferentes patamares da consciência:
Com a chave verdadeira abrir a falsa,
Com a chave falsa abrir a verdadeira
E esperar então que de ambas já dentro uma da outra
Surja por fim uma chave nem para abrir nem para fechar,
Apenas uma chave inteiramente aberta.


4


Ver a Deus não é arrancá-lo
À sua invisibilidade,
Ver a Deus é antes circunscrever com a máxima precisão
A sua invisibilidade no próprio invisível.


Rothko

18


Que outra forma senão a da ausência pode afinal
o anjo tomar
quando precisamente na ponta mais extrema do céu
um pássaro extraviado está prestes a pousar
no vazio das tuas
mãos?


24

Sobra deus a deus
E nem ele próprio sabe já sequer
O que fazer da parte excedentária,
Ao lucro que lhe rendem os silêncios das árvores,
Aos corpos ressequidos dos santos,
À sede interminável dos caminhantes;
Sobra tanto deus a deus
Enquanto tu vais coleccionando noites despovoadas
De anjos
Ou então minguadas zonas despertas do sonho;
Sobras-te tu também tão pouco a ti
Que não sabes agora como saldar tuas dívidas por um poema que ninguém garante sequer
Se virás ou não algum dia a terminar.



Brancusi


31



Há mortos que ficam a meio
Ou porque não sabiam como ultrapassar os estádios últimos do ser
Ou simplesmente por não terem cumprido a única cláusula irrevogável de um contrato celebrado por ambos.
Mas há vivos que também ficam a meio,
De quê ninguém sabe



32


Morrer é apenas o tempo concedido à morte
Para te fechar os olhos e voltar a abrir-tos
Em outro lugar;
Alguma vantagem haverá porém em morrer
De olhos abertos,
Não se há-de ela afadigar tanto a abrir-tos
E em esse outro lugar voltar a fechar-tos.

53

Meio-dia:
A sombra do fruto tem agora
O mesmo sabor do fruto.


Tapiès
54

Plenitude:
Conter sem possuir,
Encher-me do teu nada até transbordar do meu.


Tapiès

59

Acabaste a preferir a vida a ti mesmo
Com essa mesma naturalidade de estarem as árvores ainda
No seu lugar apesar de uma inadequação em altura
Para o amadurecimento dos pássaros.
Dizias então:
A vida está hoje no seu lugar
Menos os nossos corpos em avançado estado de graça;
O tempo está hoje no seu lugar
Menos o ritmo a que dilatam as nossas veias;
O mar está hoje no seu lugar
Menos os barcos naufragados de uma inclinação brusca
Do pensamento;
As palavras estão hoje no seu lugar
Menos a réplica exacta dos lábios
Ao silêncio apaziguador da pedra;
O deus está hoje no seu lugar
Menos a ossatura inacabada do seu eclipse;
Tu e eu estamos hoje no nosso lugar
Menos os ângulos tumultuados das cicatrizes das rosas sem nome,
Menos a mudez dos nossos corpos em avançado estado de vida.


(Para Yves Namur)




Paul Klee

63


Cair de joelhos
sobre o nada
de altura maior que a da casa do seu nascimento,
o peregrino:
hoje é o dia de estar a ti
em queda só nua e desamparada,
hoje é o dia de estar ao vento
em remoinho de rosas errantes e vazias;

estar a ti
como ferida em noite agreste e consentida,
estar a ti
como vela ao relento fundo do tempo,
estar a ti
como pão lançado à memória do mar em sua infância,
estar a ti
a flutuar sobre uma vida que demora o olhar
a render a cor de uns olhos,
estar a ti
morrendo devagar ao som futuro dos teus passos,
estar a ti
a nascer descalço sobre o cheiro a terra molhada,
estar a ti
de voz húmile e mais nua que o silêncio,
estar a ti
de pensamento vazio debruçado sobre
veias de pedras e palavras,
estar a ti só contigo
e já sem mim.

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