Sunday, September 03, 2006

Inéditos

Tapiès


1.

Dos dois , qual exclui doravante o outro ?
Tu ou a vida ?
Ou os dois simultaneamente ?

2.

A vida , ias dizendo ,
que é senão tempo de uma só morte perfeitamente assintomática ?


3.

Quanto menos eu for
Maiores também as probabilidades de um poema sem poeta nem poesia,
se apenas a tanto se resgatasse da palavra
inteiro o silêncio remanescente nela acumulado.

4.

Dói-lhe a vida
de seus sapatos sempre acabados de estrear,
eles próprios já todo o caminho restante reduzido a pó.

5.

Nada salva tanto , dizias,
como suportar ter mais vazio que mãos
nas mãos vazias.

6.

Quão inextricáveis ajoelhadas porém as folhas em silêncio
das árvores na iminência do vento,
órfão mais das coisas que das palavras,
assim o descaminhado,
assim o poeta.


7.

O visível é esse instante de repentina fulgurância
em que o invisível se enamora
de um olhar desprevenidamente cego.



8.

Começam ainda homens a espiar para o deus,
acabam porém com o tempo poetas a espiar para fora do deus.


9.

Pôs-se um dia a desaparecer sem rumo para vasto fora da morte
com esse mesmo temor de quem espiava em criança
pelas frinchas dos espelhos do velho sótão
à distância contemporânea a que estão da árvore o fruto e o vento
e também o último pássaro a partir;
aí ,precisamente ,a tremer inteira de silêncio,
preparava-se a vida então para te ceder o seu próprio lugar.


10.

Há dias , dizias, em que não sabes sequer para onde te fica a vida
nem por onde a queda nos principia
ou até mesmo como se aperfeiçoa este nosso inacabado estar sempre a cair ;
de e até onde é permitido à morte continuar a florir irrestrita nas bermas do homem ?

Haverá porventura como ser sido ainda por algo mais do que eu próprio,
por algo de sempre na casa desocupado a aguardar o meu regresso ?

O que não sou eu é mais vasto e fiável,
tem sobre mim a vantagem de dois rostos sobrepostos
ao perfil do mistério
que se não esgota porém todo aqui em palavra nenhuma;

diz-me:
para onde te fica agora o deus
ferido em barro informe irredento ?

11.

Não agora a morte senão as suas margens
Para inibir a sombra dos pássaros de também ela levantar voo.

12.

O deus se extrema assim
Em mãos já mais vazias do que propriamente mãos.


13.


Ausentarmo-nos daqui de quando em vez
Tomada a direcção inversa às placas sinalizadoras de onde há vida ainda;
Há momentos em que somos apenas incompatíveis com a morte,
Outros contudo em que já só a vida é compatível consigo mesma,
Esses também os únicos momentos em que tu próprio terás ido porventura
Mais longe do que uma simples soma aritmética obtida contigo
E com a tua ausência.

Negrito
14.


Não basta haver portas prévias e óbvias,
é preciso começar agora a desenhá-las também
em lugares improváveis,
em lugares prosaicos,
em lugares inóspitos,
na imobilidade simulada das árvores,
no silêncio agónico das estátuas,
nas palavras arcaicas;

mais tarde aprender como se desenha uma porta
em cada porta
e ficar-se doravante sem saber de onde parte
o som quando alguém bate,
se se está a sair ou a entrar;

só muito depois desenhar uma porta na palavra porta,
nem para dentro , nem para fora
senão para mais vasto entre onde só permanecem
aqueles que se amam já sem nenhuma porta fechada ou aberta,
já sem nenhuma palavra a mais ou a menos
já sem nenhum amor de permeio.

15.

« A vocação para a alegria era nele tão desmesurada ,
tão sem esforço que combatê-la foi tudo o que pôde ainda fazer se não quisesse soçobrar »



Terá recebido , afinal, mais vida
do que aquela que poderia comportar ?
Terá recebido também mais morte
do que aquela que poderia conceber ?
16

O que não somos nunca aqui,
mais além no-lo devolve o deus agora em dobro,
envolto tão-só já em um vazio aperfeiçoado
e sem costura.

17

Tu és em quem a morte se há-de comprometer menos
Porque tu és de uma sede de quando
O abismo tinha já emudecido em redor do silêncio.