Wednesday, April 08, 2009

Poemas de A Casa , O caminho


Tapiès



1

Todo o homem é uma invenção cuja patente
Não terá sido ainda descoberta em nenhum arquivo
Da história,
Invenção até hoje nunca reclamada por ninguém,
A solidão de um homem é esta vivência agónica de uma orfandade
Que o deixa abandonado a si mesmo,
É também a sensação obsidiante de ninguém ter ainda aparecido
Para o registar como concepção original sua,
Em constante sobressalto vive o poeta assombrado por este completo e enigmático
Desamparo que sempre o exporá aos perigos decorrentes de processos de uma falsificação
Abjecta e aleatória quando não indiscriminada,
E haverá porventura um dia em que nem ele próprio sequer saberá se é ou não
Uma mera cópia fidedigna ou uma grosseira contrafacção.





Rothko



2


É dele essa tarefa
De reconduzir um dia a coisa amada
À pedra de origem,
Processo todo de paciência e cuidado
Nunca isento dos perigos inerentes ao desmantelamento gradual
De reflexos , imagens ou cenografias
Até ao osso das sombras mais resistentes.

Alguém quando ama
Nunca se eximirá a uma estreita colaboração com a rivalidade do tempo
Em quem há-de delegar uma mais vasta liberdade
De pausas e de movimentos.




Tapiès


3


A beleza talvez não seja senão um finíssimo traço,
Um sulco ínfimo
Extraviado da mão de um criador e deixado em abandono
À superfície da coisa criada,
Refolho tantas vezes vivido como uma espécie de defeito de fabrico
Para sempre irremível;

A todo o custo se pretenderá dissimulá-lo,
Desviar assim toda a atenção dessa marca quase imperceptível
Tão semelhante a um pecado inexpiável,
A um remorso impreciso ,
A uma cicatriz monstruosa;

Terrível é perdurar entre nós
Um sinal ainda vivo de parentesco com uma descuidada mão
Cujo anonimato ideal ter-nos-ia sem dúvida preservado
Das investidas de um desejo duro sempre tão eternamente incompatibilizado
Com a vida e também com a morte.






Tapiès

4

Uma válvula que regule
Em tempo e distância o silêncio necessário
À cicatrização do pão e da água,
Uma válvula que regule
A acuidade de olhar-te
Onde estejas agora sem a protecção
De uma nudez emprestada ao corpo,
Uma válvula que regule
A pressão de estreitar-te nos braços
Sem ferir a tua ausência,
Uma válvula que regule
A chantagem instante de uma espera
Mais antiga que a esperança,
Uma válvula que regule
Os níveis de exposição à beleza de um rosto entrevisto um dia
Entre a multidão;

Antes porém deverás desocupar todos os gestos desnecessários ao crescimento ímpar
De uma árvore ou de um beijo,
Desocupar ainda em ti todos esses espaços
Que não sirvam já de santuário nem ao passado nem ao futuro,
Desocupar o som dos sinos que não sirvam já de colunas a um templo
De deuses orfãos,
Desocupar algumas presenças intrusas
Que interferem como um ruído de fundo contínuo no canto das cigarras,
Desocupar recintos de vida onde não medra
Sequer a persistência desenganada do deserto,
Desocupar sepulcros que não respeitem
O traçado incisivo dos mortos,
Desocupar o que nos olhos ainda não aprendeu
A distinguir os ângulos que asseguram uma focagem nítida
Da noite contígua aos corpos;
Só então,através de ti, poderei amar-te,
Através das tuas histórias,
De alguns gestos teus ,
Dessa tua melancolia capaz de comunicar com algo maior
Que um mero pensamento,
Amar-te através da circulação sanguínea
Da tua presença mais rente à pele,
Através de estar a sós contigo
À sombra de um antigo espelho de infância,
Através de silêncios e palavras
Que apenas tu sabes articular adequadamente
Com a precisão das marés.

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