Thursday, April 09, 2009

Poemas de A Salvação pelo Vazio ( 2005 )





Gruta Chauvet (França)


1



Com a mão já fora da vida
Aguardam ainda por uma hipotética salvação pelo vazio,
Entretanto vão escrevendo em copas espessas de silêncio
Altíssimo e escuro,
E sabem que não lhes resta doravante ser senão mão condenada a tactear pelo visível restante tempo apenas do regresso de correlata mão fora da morte.
E de ambas uma agora dentro da outra
Floresce por fim inteira
Inominável prece a uma só mão.

2


Mãos pacientes
Nos confins dos mortos eleitos ainda por nascer
E erguidas à altura de uma voz sem boca
Se revezam de madrugada em carne viva;
Haver sempre a quem deixar o testemunho de um derradeiro olhar nítido das coisas
Sem nenhuma palavra de permeio.


Brancusi
3


De herança apenas duas chaves,
Verdadeira uma,a outra falsa.

Uns ,vencendo iniciais resistências
Experimentam em portas,
Outros,em corações;
Outros ainda,tomados por um súbito temor,
Nada tentam e dedicam-se agora a esquecê-las.
Há ainda aqueles que as experimentam em si próprios,
Com a falsa julgar-se-ão eternos,
Com a verdadeira simples deuses no exílio.
Tudo obedece porém a um conjunto sequenciado
De algumas operações em diferentes patamares da consciência:
Com a chave verdadeira abrir a falsa,
Com a chave falsa abrir a verdadeira
E esperar então que de ambas já dentro uma da outra
Surja por fim uma chave nem para abrir nem para fechar,
Apenas uma chave inteiramente aberta.


4


Ver a Deus não é arrancá-lo
À sua invisibilidade,
Ver a Deus é antes circunscrever com a máxima precisão
A sua invisibilidade no próprio invisível.


Rothko

18


Que outra forma senão a da ausência pode afinal
o anjo tomar
quando precisamente na ponta mais extrema do céu
um pássaro extraviado está prestes a pousar
no vazio das tuas
mãos?


24

Sobra deus a deus
E nem ele próprio sabe já sequer
O que fazer da parte excedentária,
Ao lucro que lhe rendem os silêncios das árvores,
Aos corpos ressequidos dos santos,
À sede interminável dos caminhantes;
Sobra tanto deus a deus
Enquanto tu vais coleccionando noites despovoadas
De anjos
Ou então minguadas zonas despertas do sonho;
Sobras-te tu também tão pouco a ti
Que não sabes agora como saldar tuas dívidas por um poema que ninguém garante sequer
Se virás ou não algum dia a terminar.



Brancusi


31



Há mortos que ficam a meio
Ou porque não sabiam como ultrapassar os estádios últimos do ser
Ou simplesmente por não terem cumprido a única cláusula irrevogável de um contrato celebrado por ambos.
Mas há vivos que também ficam a meio,
De quê ninguém sabe



32


Morrer é apenas o tempo concedido à morte
Para te fechar os olhos e voltar a abrir-tos
Em outro lugar;
Alguma vantagem haverá porém em morrer
De olhos abertos,
Não se há-de ela afadigar tanto a abrir-tos
E em esse outro lugar voltar a fechar-tos.

53

Meio-dia:
A sombra do fruto tem agora
O mesmo sabor do fruto.


Tapiès
54

Plenitude:
Conter sem possuir,
Encher-me do teu nada até transbordar do meu.


Tapiès

59

Acabaste a preferir a vida a ti mesmo
Com essa mesma naturalidade de estarem as árvores ainda
No seu lugar apesar de uma inadequação em altura
Para o amadurecimento dos pássaros.
Dizias então:
A vida está hoje no seu lugar
Menos os nossos corpos em avançado estado de graça;
O tempo está hoje no seu lugar
Menos o ritmo a que dilatam as nossas veias;
O mar está hoje no seu lugar
Menos os barcos naufragados de uma inclinação brusca
Do pensamento;
As palavras estão hoje no seu lugar
Menos a réplica exacta dos lábios
Ao silêncio apaziguador da pedra;
O deus está hoje no seu lugar
Menos a ossatura inacabada do seu eclipse;
Tu e eu estamos hoje no nosso lugar
Menos os ângulos tumultuados das cicatrizes das rosas sem nome,
Menos a mudez dos nossos corpos em avançado estado de vida.


(Para Yves Namur)




Paul Klee

63


Cair de joelhos
sobre o nada
de altura maior que a da casa do seu nascimento,
o peregrino:
hoje é o dia de estar a ti
em queda só nua e desamparada,
hoje é o dia de estar ao vento
em remoinho de rosas errantes e vazias;

estar a ti
como ferida em noite agreste e consentida,
estar a ti
como vela ao relento fundo do tempo,
estar a ti
como pão lançado à memória do mar em sua infância,
estar a ti
a flutuar sobre uma vida que demora o olhar
a render a cor de uns olhos,
estar a ti
morrendo devagar ao som futuro dos teus passos,
estar a ti
a nascer descalço sobre o cheiro a terra molhada,
estar a ti
de voz húmile e mais nua que o silêncio,
estar a ti
de pensamento vazio debruçado sobre
veias de pedras e palavras,
estar a ti só contigo
e já sem mim.

Poemas de A Casa , o Caminho

Tapiès

« Vivre sans vivant,comme mourir sans mort:
écrire nous renvoie à des propositions énigmatiques »

Maurice Blanchot


Para António Ramos Rosa



Continuava a insistir do fundo estreito da queda
Essa mais íngreme voz
Que não terei por certo caído ainda o suficiente
À medida imposta pelo silêncio para a trasladação da palavra ao dizer,
Sempre um melro precede por cada morte mais recuada
A abnegação do seu próprio canto,
Tempo recobrado e agora devolvido às palavras
Como animais despertos e crucificados
À tua única ferida sempre fiel que nada te havia prometido,
Não por uma qualquer fala tua chegarei a reconhecer-te
Nem mesmo em redor da tua voz que ignora o teu primeiro nome,
Não porque não vejas ainda as coisas já todas acontecidas
Deverás presumir que não terão porventura acontecido,
Tudo aconteceu, apenas não adveio,
Tudo aconteceu já até ao último instante,
Tudo aconteceu já até ao último melro
E a vida toda afinal tão-só para poder ouvi-lo
Porque ver crescer a árvore é ofício clandestino do relâmpago;
E são os cães então cegos a regressar do futuro com a ossatura
Fissurada
Dos teus passos perigosamente reclinados
Sobre um espelho surdo-mudo com imagens
Iminentes porém de advento numa consumada anterioridade futura,
Estão os poetas também desmesuradamente atentos
Em agudas intenções de descida;
A uma janela que é futuro em relação ao resto da casa
Riposta a sombra de uma árvore
Faltando-lhe apenas advir o melro
A uma distância de três manhãs consecutivas
Só para te confirmar e desnomear.




*


Tapiès




Sempre mais improvável cada dia
Que sare sobre o olhar essa cicatriz aí abandonada por um mero descuido
Da morte em suas manobras quotidianas de extracção de luz e abismo,
Descias entretanto por noite escura um caminho estreito sem sinalização adequada
De estar a vida ainda em fase terminal de reparação;
Algures já só o som estridente de uns dados a rolar até à exaustão
De suas premeditadas combinatórias,
Sem outra alternativa que não seja participares também tu desse jogo clandestino,
Em vez de dados terias de lançar as mãos
Perante a indiferença altaneira
De teus parceiros,
O deus e também a sua ausência agora em incestuosa cumplicidade
Furiosamente atirando uns contra os outros seus viciados eternos dados,
De um único lance se te exige que obtenhas agora
De cada dado essoutro rosto sempre oculto
Apenas com uma simples trajectória da mão no vazio de um tabuleiro paralelo;
Para sempre mudo se ganhares,
Para sempre silencioso se perderes,
Em ambos os casos
O deserto.



Tapiès

8


Cair de ti
Nunca será exactamente o mesmo
Que cair de outra coisa qualquer,
Muito menos de mim;

Um fruto liberto da árvore,
Um fruto arrancado pelo vento
Ou por mãos ávidas,
Tudo formas díspares
Da queda;

Um dia escolher de onde cair
E sermos devolvidos
À raiz da casa mais isenta de excrecências
Do pensamento,
Escolher depois alguém ímpar de onde cair
À altura de um último olhar trocado
Em silêncio;
Cair de ti
Com essa lhaneza estreme
Do fruto a abandonar a árvore
À chegada pontual
Do amadurecimento;

Entretanto ao deus e ao declive mais pronunciado
Do seu eclipse
Não lhes resta agora senão escolher de onde cair à maior altura
De uma ponte levadiça,ponte altíssima erguida
Por sobre todo um espaço sobejante de areias movediças entre ambos,
Contigo apenas a ampará-los em contraluz com essa tua ferida ancestral
De que te vais esvaindo em silêncio trémulo mas unívoco
Até à hemóstase de um poema
Que sobre si mesmo gira agora
À semelhança de um pião já
Inteiramente imune ao tempo
Dos círculos indigentes e viciosos.




Tapiès

( Para João e Manuela, meus pais )

9

«Um pescador exangue puxando as suas redes com tanto naufrágio dentro»

Todo este tempo nosso que desperdiçamos a ser
Tão inconsequentemente breves
Que já tão pouco vivos nos vamos deste modo arrastando
Até à morte;

Diz-me quanto tempo leva o canto do melro
A sucumbir a um mero chamamento teu,
Diz-me quanto tempo leva a tua brevidade a percorrer
Toda a distância a que estarei agora do silêncio
Da tua casa.



Brancusi

10

Terás chegado talvez tarde ao teu nascimento
E cedo de mais à tua morte,
A vida toda tem sido esse teu esforço de malabarista amador
Para coordenar todos estes movimentos discrepantes de atraso e antecipação;

Começas a não ter posição sobretudo em certos dias
Para estares apenas vivo,
Contorsões incessantes do espírito em busca desse ponto ínfimo
Onde acaso repousar da vida
Por alguns instantes.





Tapiès

11

Andar hoje mais a ti
Do que estar vivo apenas,
Andar hoje a ti
De pensamento inteiramente descalço
Do meu caminho,
Andar hoje a ti
Pela equidistância de um assobio ao ser
E ao nada,
Andar hoje a ti
Contigo de talismã ao peito contra investidas tangenciais
Da morte,
Andar hoje a ti
Mais até que à nudez do teu corpo,
Mais até que à chuva convexa do amor,
Andar hoje a ti
Sem palavras minhas ou tuas
De permeio;

E mal haja então um poema
Andar a ti
Descalço agora até
De deus,
De pão,
De água,
De nada,
Até mesmo dessa rosa
Escondida em segredo um dia por nós dois
Em lugar bem mais seguro
Fora da vida.

Wednesday, April 08, 2009

Poemas de A Casa , O caminho


Tapiès



1

Todo o homem é uma invenção cuja patente
Não terá sido ainda descoberta em nenhum arquivo
Da história,
Invenção até hoje nunca reclamada por ninguém,
A solidão de um homem é esta vivência agónica de uma orfandade
Que o deixa abandonado a si mesmo,
É também a sensação obsidiante de ninguém ter ainda aparecido
Para o registar como concepção original sua,
Em constante sobressalto vive o poeta assombrado por este completo e enigmático
Desamparo que sempre o exporá aos perigos decorrentes de processos de uma falsificação
Abjecta e aleatória quando não indiscriminada,
E haverá porventura um dia em que nem ele próprio sequer saberá se é ou não
Uma mera cópia fidedigna ou uma grosseira contrafacção.





Rothko



2


É dele essa tarefa
De reconduzir um dia a coisa amada
À pedra de origem,
Processo todo de paciência e cuidado
Nunca isento dos perigos inerentes ao desmantelamento gradual
De reflexos , imagens ou cenografias
Até ao osso das sombras mais resistentes.

Alguém quando ama
Nunca se eximirá a uma estreita colaboração com a rivalidade do tempo
Em quem há-de delegar uma mais vasta liberdade
De pausas e de movimentos.




Tapiès


3


A beleza talvez não seja senão um finíssimo traço,
Um sulco ínfimo
Extraviado da mão de um criador e deixado em abandono
À superfície da coisa criada,
Refolho tantas vezes vivido como uma espécie de defeito de fabrico
Para sempre irremível;

A todo o custo se pretenderá dissimulá-lo,
Desviar assim toda a atenção dessa marca quase imperceptível
Tão semelhante a um pecado inexpiável,
A um remorso impreciso ,
A uma cicatriz monstruosa;

Terrível é perdurar entre nós
Um sinal ainda vivo de parentesco com uma descuidada mão
Cujo anonimato ideal ter-nos-ia sem dúvida preservado
Das investidas de um desejo duro sempre tão eternamente incompatibilizado
Com a vida e também com a morte.






Tapiès

4

Uma válvula que regule
Em tempo e distância o silêncio necessário
À cicatrização do pão e da água,
Uma válvula que regule
A acuidade de olhar-te
Onde estejas agora sem a protecção
De uma nudez emprestada ao corpo,
Uma válvula que regule
A pressão de estreitar-te nos braços
Sem ferir a tua ausência,
Uma válvula que regule
A chantagem instante de uma espera
Mais antiga que a esperança,
Uma válvula que regule
Os níveis de exposição à beleza de um rosto entrevisto um dia
Entre a multidão;

Antes porém deverás desocupar todos os gestos desnecessários ao crescimento ímpar
De uma árvore ou de um beijo,
Desocupar ainda em ti todos esses espaços
Que não sirvam já de santuário nem ao passado nem ao futuro,
Desocupar o som dos sinos que não sirvam já de colunas a um templo
De deuses orfãos,
Desocupar algumas presenças intrusas
Que interferem como um ruído de fundo contínuo no canto das cigarras,
Desocupar recintos de vida onde não medra
Sequer a persistência desenganada do deserto,
Desocupar sepulcros que não respeitem
O traçado incisivo dos mortos,
Desocupar o que nos olhos ainda não aprendeu
A distinguir os ângulos que asseguram uma focagem nítida
Da noite contígua aos corpos;
Só então,através de ti, poderei amar-te,
Através das tuas histórias,
De alguns gestos teus ,
Dessa tua melancolia capaz de comunicar com algo maior
Que um mero pensamento,
Amar-te através da circulação sanguínea
Da tua presença mais rente à pele,
Através de estar a sós contigo
À sombra de um antigo espelho de infância,
Através de silêncios e palavras
Que apenas tu sabes articular adequadamente
Com a precisão das marés.

Tuesday, April 07, 2009

Poemas de A Casa, O Caminho ( 2008 )






« Dans la fidélité, nous apprenons à n’être jamais consolés»

René Char



Para Yves Namur

A quem o silêncio do deus não terá deixado porém de importunar,
A esse, sempre restará uma possibilidade de revalidada prece
No ponto de disjunção entre carne e verbo;

Há um mar todavia que devolve o náufrago amante,
Há uma morte que devolve também o moribundo mais experiente,
Há uma vida que sempre afugenta o pescador e suas vetustas redes;

Se,por alguns instantes,morrer
Se tornasse tão inviável quanto não ter sequer já algures nascido!
E viesse então eu a morrer muito mais que não apenas de mim
Senão igualmente dos incuráveis descaminhos da eternidade
Teria acaso nesse dia favorável o vento
Para me conduzir às redes desse pescador clandestino
Onde um mar e um naufrágio são sempre de perfil
Uma e mesma coisa;

E toda essa ausência minha obstinada em ferida aberta
Deverá o pescador algum dia içar como uma herança sua
De silêncios libertos da premência
Do dizer e do calar;

Lanço um grito subitamente do ângulo mais furioso da voz
Contra as reentrâncias da morte,
E o eco há-de por fim resgatar o poema
Que me gritará depois contra a vida,
Com o eco deste grito não serei doravante mais que uma mera reparação da mesa e do pão
Depois do festim,
E serei talvez absolvição de actos e palavras,
Aí onde nem sequer a vida poderá já abranger-nos,
Aí onde caducou qualquer eventualidade de uma morte inacabada;

Como dois espias zelosos nós nos olhamos
Para algures nos olhos do outro surpreender esse olhar
Que vai além de onde estamos,
Um olhar que vai onde os olhos
Capitulam sempre demasiado cedo,
Surpreender esse olhar como uma criança atrairia o canto do grilo
Para fora do seu esconderijo,
E sermos confirmados assim rente à queda
Durante o equilíbrio periclitante da luz
Para nos despertar dessa morte afinal em que tão desatentos andávamos vida fora.

Indubitavelmente mais estremecedor que o simples morrer
É este estar vivo de excepção à regra de quase tudo nunca ter sequer chegado aqui
A existir connosco nesta discretíssima celebração das exéquias do homem
Ou desta nossa incapacidade consuetudinária de não sabermos onde pôr a salvo o humano,
Se nesse ponto de disjunção entre a morte e o canto do grilo,
Se entre uma ferida inexpugnável do mar e a fidelidade do silêncio restante
Ao fundo sem fundo das redes do pescador.



*

Tapiès


É chegado o tempo
De saldar as dívidas contraídas
Com o termos forçado a vida a deixar-nos espreitar para fora dela;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas contraídas
Com o teres-me consentido que espreitasse atrás dos teus olhos;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas
Com o pescador que por minha causa inaugurou as suas redes
Para separar do mar o meu naufrágio;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas contraídas
Com o ter a morte a meu pedido recuado até onde pudesse depois ceder-me
Esse seu espaço vago para cultivar
Palavras sem coisas
E coisas sem nome
E ainda algumas ausências substitutivas
Do deus por vir;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas contraídas
Com alguém que guiou os meus passos
Para fora dos espelhos antigos da infância,
Com alguém que me revezou
Enquanto eu simplesmente podia estar a morrer do teu sonho para cá
Sem as interferências supérfluas da morte ao mesmo tempo
Que te ia também ditando palavras soltas e libertas já do peso
Da gravidade dos círculos metafóricos do silêncio;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas todas contraídas
Com o não ter nunca solicitado aquela que talvez
Me pudesse perdoar todos os outros empréstimos:
Ter-me proposto como candidato
A nascer de frente para trás,
Aí onde se não nasce ou morre apenas
Uma única vez,
Aí onde só é possível
Ir nascendo ou morrendo sempre de forma alternada
Ou,até em casos mais raros,de forma concomitante,
Aí onde nos salva a não-sucessividade
De termos uma única linha de vida
Tão longa mas sem as bifurcações
Que são as mãos limpas e abertas
Para não estarmos reduzidos apenas ao que foi e às suas
Consequências unilaterais,
Não mais então o horror infundido
Por este pensamento que nos pretende persuadir
De que todas as coisas poderiam não ter sido necessariamente
Na sua disposição aleatória de quem apenas podia seguir um único caminho
Com o sacrifício de infinitos e paralelos chamamentos
Que também em vão nos terão disputado.

Poema inicial de A Casa, o Caminho


Klee



«(...)


«Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
Uma vez que já tudo se perdeu.
(…) »
Ruy Belo
Homem de Palavra(s)

Prólogo


Que nome o dessoutro lugar
A desprender-se da vida
Como fruto fora de estação ?

- Nesse instante , dizes , a própria linguagem me deserta - ,
E quem sobreviveria também à provação de ser proferido ?

Esse é o instante da síntese em que o que terei sido acabava sempre
Por se encontrar perpendicularmente com tudo o que viria depois.

O que serei e não serei,
Tudo isso , dizes,
Terá já acontecido,
Apenas faltando acontecer
O mais eternamente consumado.

Ao que te sobra ainda do deus o poema lhe acrescenta silêncio, deserto
E ausência.
O poeta é quem se pôs um dia a caminho
Dos caminhos todos bifurcados no tempo ;




Nenhuma rosa poderá recompor-se
após o perigo que foi ter-nos dado em simultâneo
o rosto e o olhar,
a rosa é essa inexperiência de um deus incapaz
de caber inteiro na vida,
um deus impossibilitado agora de nos proteger
da beleza mais vermelha
derramada sobre a neve,
Deponho o meu nome aos pés descalços
Das coisas :
A morte a nascer sempre mais breve
De cada vez que ouço o rumor
Dos teus passos indefesos e nus,
Colocar palavra por palavra
No lugar exacto do abismo
Que é o de cada coisa sem ninguém;

Ainda não falamos,
Incessantemente dizemos
tão-só até às palavras por enquanto;
o que foste no agora ainda já tão distante
a morte o predisse e concedeu também,
que o poema sobreviva por fim à obscura dádiva
do vazio,
e sem nunca te contradizer
a cada verso tu hás-de desmorrer através dela
para sempre mais desdito
e veemente.

Não para o ser ou
Para o amor aqui é o lugar,
O lugar é aqui tudo o que nos ata
Aos mastros rotos dos dias mais ignóbeis.

Tu és ainda um perfil de morte intacta e limpa,
É de uma vida mais funda
Que o abismo mais leve porém que ave,
Serás assim uma morte salva,
Naco de pão mais perdurável que o tempo
De depois das palavras ;



Porque tu és de um vazio muito para além do deus,
Porque tu resgataste nas tuas redes remendadas de pescador
O que restou da memória dos peixes
à superfície da mudez liberta do mundo,
porque tu és de uma sede maior e mais antiga que o deserto,
forma de pão anterior à fome e à mesa,
água mais perene que qualquer morte,
tu és quem ousou o que no inacabado
não pode permanecer eternamente ofendido.

Tudo quanto te não ias sendo
Só por amor do que poderia ter sido,
Foste tu entretanto que ergueu por nós
Altíssimo o espantalho que afugentava
O que na vida conspira o tempo todo contra nós;

Uma rosa,
Um rosto,
Um teorema,
Um poema,
Tudo isso enquanto perdurar esta equação a destempo
De carne e espírito
A que sempre faltou a premissa inicial;

Aprende a separar
O que são só as palavras do silêncio
Das palavras que serão as tuas no silêncio.

A tempo ainda de,
E mesmo não sendo já possível a salvação,
Salvares teu derradeiro naufrágio
Das intempéries do pensamento.

A tempo ainda de esvaziares os olhos
Para preservar o olhar,
Aí também o lugar onde a morte dá sombra,
Aí o amor,
Aí o amor
À sombra desterrada
Dos trabalhos e dos dias,
Aí , à sombra do declive mais perigoso
Do invisível
Cresce também o que salva…

Poema de O deus do inacabado ( inédito )


Tapiès





XXX


Se a sombra da árvore
decidisse usurpar o lugar da árvore,
a qual delas regressariam na primavera as aves dos antípodas?
Em qual delas os ramos a abater
pelo lenhador à chegada do inverno ?

A sombra desta árvore parece assim ter adquirido movimentos próprios que a levarão a tomar a iniciativa de se reclinar também
para onde a luz mais incide;
esta sombra sabe que é um corpo estranho à árvore,
sabe e contudo não desistirá mesmo correndo o risco incontornável
de se dissipar absorvida justamente pela luz
que a tinha esculpido contra a árvore;

talvez o pensamento se assemelhe um pouco a essa sombra temerária
que tomou consciência um dia da sua incómoda posição de subalternidade em relação à vida,
também ele há-de insistir nem que por isso tenha de colidir
com aquilo a que deve os contornos à necessária delimitação
do seu perímetro vital.

Se a sombra de um pássaro
entrasse em competição desenfreada com o pássaro,
de qual o voo depois que iria sobreviver-lhes incólume?

Se a sombra de um homem
entrasse também em competição com esse homem,
de qual deles seria posteriormente o único pensamento a salvo ?

Se a sombra da tua mão
começasse igualmente a reivindicar à tua mão
a proeminência da escrita
de qual delas seria o traçado das linhas de fuga sobre
o branco último da página ?

Se a sombra das palavras
iniciasse um motim contra essas mesmas palavras,
com quais o poema consentiria ser escrito ?

Se a sombra do teu olhar
disputasse a primazia ao teu olhar,
por qual deles os teus olhos optariam
para avistares deles a árvore do inconhecimento ?

Se em disputa pelo teu amor
a sombra de quem amas
desalojasse a quem amas,
qual estreitarias num demorado abraço totalmente aberto ?

Se a sombra do vento
por um qualquer motivo se pusesse ela também a simular o vento,
em qual deles o voo dos pássaros
tomaria a direcção do canto exacto ?

Se a sombra da rosa
quisesse ainda florir com porquê,
qual delas tomarias pela rosa sem porquê ?

Se a sombra da tua porta
disputasse a essa porta a exclusividade de abrir e fechar,
a qual delas baterias tu primeiro
para entrar por fim em tua casa ?


Se a sombra de uma janela
tomasse a iniciativa de ser a janela,
qual delas abririas tu de par em par ?

Se a luz ela própria
tivesse sombra que não se contivesse depois
em ocupar-lhe o lugar,
a qual delas a árvore entregaria sem hesitar
o amadurecimento dos frutos ?

Se a sombra da vida
não pudesse tão-pouco conformar-se com um estatuto subalterno
e pretendesse desafiar a vida para um duelo
de que uma apenas sobreviveria,
por qual delas, sem saber-se previamente o desfecho,
te inclinarias ?

Se a sombra da morte
se sublevasse contra a morte,
qual das duas seria a tua primeira escolha
para te acompanhar até à ultima palavra ?

Se uma das tuas diversas sombras
optasse por unificá-las a todas elas
numa única que posteriormente se decidisse com inteira autonomia
a ocupar-te o corpo e o lugar dele,
onde estarias tu a essa hora
para escolher ?

Se o deus tivesse uma sombra
que lhe reivindicasse a primazia das intermitências e eclipses,
perante qual deles te reclinarias de joelhos sobre o tempo ?
qual convocarias para a palavra mais ao centro ?
de qual te desembaraçarias ao adormecer ?
contra qual ausência de ambos
te baterias num combate sem tréguas até ao amanhecer ?
a qual abandonarias apenas com a condição de ele te abençoar ?

Monday, January 12, 2009

Sunday, September 03, 2006

Inéditos

Tapiès


1.

Dos dois , qual exclui doravante o outro ?
Tu ou a vida ?
Ou os dois simultaneamente ?

2.

A vida , ias dizendo ,
que é senão tempo de uma só morte perfeitamente assintomática ?


3.

Quanto menos eu for
Maiores também as probabilidades de um poema sem poeta nem poesia,
se apenas a tanto se resgatasse da palavra
inteiro o silêncio remanescente nela acumulado.

4.

Dói-lhe a vida
de seus sapatos sempre acabados de estrear,
eles próprios já todo o caminho restante reduzido a pó.

5.

Nada salva tanto , dizias,
como suportar ter mais vazio que mãos
nas mãos vazias.

6.

Quão inextricáveis ajoelhadas porém as folhas em silêncio
das árvores na iminência do vento,
órfão mais das coisas que das palavras,
assim o descaminhado,
assim o poeta.


7.

O visível é esse instante de repentina fulgurância
em que o invisível se enamora
de um olhar desprevenidamente cego.



8.

Começam ainda homens a espiar para o deus,
acabam porém com o tempo poetas a espiar para fora do deus.


9.

Pôs-se um dia a desaparecer sem rumo para vasto fora da morte
com esse mesmo temor de quem espiava em criança
pelas frinchas dos espelhos do velho sótão
à distância contemporânea a que estão da árvore o fruto e o vento
e também o último pássaro a partir;
aí ,precisamente ,a tremer inteira de silêncio,
preparava-se a vida então para te ceder o seu próprio lugar.


10.

Há dias , dizias, em que não sabes sequer para onde te fica a vida
nem por onde a queda nos principia
ou até mesmo como se aperfeiçoa este nosso inacabado estar sempre a cair ;
de e até onde é permitido à morte continuar a florir irrestrita nas bermas do homem ?

Haverá porventura como ser sido ainda por algo mais do que eu próprio,
por algo de sempre na casa desocupado a aguardar o meu regresso ?

O que não sou eu é mais vasto e fiável,
tem sobre mim a vantagem de dois rostos sobrepostos
ao perfil do mistério
que se não esgota porém todo aqui em palavra nenhuma;

diz-me:
para onde te fica agora o deus
ferido em barro informe irredento ?

11.

Não agora a morte senão as suas margens
Para inibir a sombra dos pássaros de também ela levantar voo.

12.

O deus se extrema assim
Em mãos já mais vazias do que propriamente mãos.


13.


Ausentarmo-nos daqui de quando em vez
Tomada a direcção inversa às placas sinalizadoras de onde há vida ainda;
Há momentos em que somos apenas incompatíveis com a morte,
Outros contudo em que já só a vida é compatível consigo mesma,
Esses também os únicos momentos em que tu próprio terás ido porventura
Mais longe do que uma simples soma aritmética obtida contigo
E com a tua ausência.

Negrito
14.


Não basta haver portas prévias e óbvias,
é preciso começar agora a desenhá-las também
em lugares improváveis,
em lugares prosaicos,
em lugares inóspitos,
na imobilidade simulada das árvores,
no silêncio agónico das estátuas,
nas palavras arcaicas;

mais tarde aprender como se desenha uma porta
em cada porta
e ficar-se doravante sem saber de onde parte
o som quando alguém bate,
se se está a sair ou a entrar;

só muito depois desenhar uma porta na palavra porta,
nem para dentro , nem para fora
senão para mais vasto entre onde só permanecem
aqueles que se amam já sem nenhuma porta fechada ou aberta,
já sem nenhuma palavra a mais ou a menos
já sem nenhum amor de permeio.

15.

« A vocação para a alegria era nele tão desmesurada ,
tão sem esforço que combatê-la foi tudo o que pôde ainda fazer se não quisesse soçobrar »



Terá recebido , afinal, mais vida
do que aquela que poderia comportar ?
Terá recebido também mais morte
do que aquela que poderia conceber ?
16

O que não somos nunca aqui,
mais além no-lo devolve o deus agora em dobro,
envolto tão-só já em um vazio aperfeiçoado
e sem costura.

17

Tu és em quem a morte se há-de comprometer menos
Porque tu és de uma sede de quando
O abismo tinha já emudecido em redor do silêncio.