Tuesday, April 07, 2009

Poemas de A Casa, O Caminho ( 2008 )






« Dans la fidélité, nous apprenons à n’être jamais consolés»

René Char



Para Yves Namur

A quem o silêncio do deus não terá deixado porém de importunar,
A esse, sempre restará uma possibilidade de revalidada prece
No ponto de disjunção entre carne e verbo;

Há um mar todavia que devolve o náufrago amante,
Há uma morte que devolve também o moribundo mais experiente,
Há uma vida que sempre afugenta o pescador e suas vetustas redes;

Se,por alguns instantes,morrer
Se tornasse tão inviável quanto não ter sequer já algures nascido!
E viesse então eu a morrer muito mais que não apenas de mim
Senão igualmente dos incuráveis descaminhos da eternidade
Teria acaso nesse dia favorável o vento
Para me conduzir às redes desse pescador clandestino
Onde um mar e um naufrágio são sempre de perfil
Uma e mesma coisa;

E toda essa ausência minha obstinada em ferida aberta
Deverá o pescador algum dia içar como uma herança sua
De silêncios libertos da premência
Do dizer e do calar;

Lanço um grito subitamente do ângulo mais furioso da voz
Contra as reentrâncias da morte,
E o eco há-de por fim resgatar o poema
Que me gritará depois contra a vida,
Com o eco deste grito não serei doravante mais que uma mera reparação da mesa e do pão
Depois do festim,
E serei talvez absolvição de actos e palavras,
Aí onde nem sequer a vida poderá já abranger-nos,
Aí onde caducou qualquer eventualidade de uma morte inacabada;

Como dois espias zelosos nós nos olhamos
Para algures nos olhos do outro surpreender esse olhar
Que vai além de onde estamos,
Um olhar que vai onde os olhos
Capitulam sempre demasiado cedo,
Surpreender esse olhar como uma criança atrairia o canto do grilo
Para fora do seu esconderijo,
E sermos confirmados assim rente à queda
Durante o equilíbrio periclitante da luz
Para nos despertar dessa morte afinal em que tão desatentos andávamos vida fora.

Indubitavelmente mais estremecedor que o simples morrer
É este estar vivo de excepção à regra de quase tudo nunca ter sequer chegado aqui
A existir connosco nesta discretíssima celebração das exéquias do homem
Ou desta nossa incapacidade consuetudinária de não sabermos onde pôr a salvo o humano,
Se nesse ponto de disjunção entre a morte e o canto do grilo,
Se entre uma ferida inexpugnável do mar e a fidelidade do silêncio restante
Ao fundo sem fundo das redes do pescador.



*

Tapiès


É chegado o tempo
De saldar as dívidas contraídas
Com o termos forçado a vida a deixar-nos espreitar para fora dela;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas contraídas
Com o teres-me consentido que espreitasse atrás dos teus olhos;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas
Com o pescador que por minha causa inaugurou as suas redes
Para separar do mar o meu naufrágio;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas contraídas
Com o ter a morte a meu pedido recuado até onde pudesse depois ceder-me
Esse seu espaço vago para cultivar
Palavras sem coisas
E coisas sem nome
E ainda algumas ausências substitutivas
Do deus por vir;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas contraídas
Com alguém que guiou os meus passos
Para fora dos espelhos antigos da infância,
Com alguém que me revezou
Enquanto eu simplesmente podia estar a morrer do teu sonho para cá
Sem as interferências supérfluas da morte ao mesmo tempo
Que te ia também ditando palavras soltas e libertas já do peso
Da gravidade dos círculos metafóricos do silêncio;

É chegado o tempo
De saldar as dívidas todas contraídas
Com o não ter nunca solicitado aquela que talvez
Me pudesse perdoar todos os outros empréstimos:
Ter-me proposto como candidato
A nascer de frente para trás,
Aí onde se não nasce ou morre apenas
Uma única vez,
Aí onde só é possível
Ir nascendo ou morrendo sempre de forma alternada
Ou,até em casos mais raros,de forma concomitante,
Aí onde nos salva a não-sucessividade
De termos uma única linha de vida
Tão longa mas sem as bifurcações
Que são as mãos limpas e abertas
Para não estarmos reduzidos apenas ao que foi e às suas
Consequências unilaterais,
Não mais então o horror infundido
Por este pensamento que nos pretende persuadir
De que todas as coisas poderiam não ter sido necessariamente
Na sua disposição aleatória de quem apenas podia seguir um único caminho
Com o sacrifício de infinitos e paralelos chamamentos
Que também em vão nos terão disputado.

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