

1
Com a mão já fora da vida
Aguardam ainda por uma hipotética salvação pelo vazio,
Entretanto vão escrevendo em copas espessas de silêncio
Altíssimo e escuro,
E sabem que não lhes resta doravante ser senão mão condenada a tactear pelo visível restante tempo apenas do regresso de correlata mão fora da morte.
E de ambas uma agora dentro da outra
Floresce por fim inteira
Inominável prece a uma só mão.
2
Mãos pacientes
Nos confins dos mortos eleitos ainda por nascer
E erguidas à altura de uma voz sem boca
Se revezam de madrugada em carne viva;
Haver sempre a quem deixar o testemunho de um derradeiro olhar nítido das coisas
Sem nenhuma palavra de permeio.

De herança apenas duas chaves,
Verdadeira uma,a outra falsa.
Uns ,vencendo iniciais resistências
Experimentam em portas,
Outros,em corações;
Outros ainda,tomados por um súbito temor,
Nada tentam e dedicam-se agora a esquecê-las.
Há ainda aqueles que as experimentam em si próprios,
Com a falsa julgar-se-ão eternos,
Com a verdadeira simples deuses no exílio.
Tudo obedece porém a um conjunto sequenciado
De algumas operações em diferentes patamares da consciência:
Com a chave verdadeira abrir a falsa,
Com a chave falsa abrir a verdadeira
E esperar então que de ambas já dentro uma da outra
Surja por fim uma chave nem para abrir nem para fechar,
Apenas uma chave inteiramente aberta.
Ver a Deus não é arrancá-lo
À sua invisibilidade,
Ver a Deus é antes circunscrever com a máxima precisão
A sua invisibilidade no próprio invisível.

Rothko
18
Que outra forma senão a da ausência pode afinal
o anjo tomar
quando precisamente na ponta mais extrema do céu
um pássaro extraviado está prestes a pousar
no vazio das tuas
mãos?
24
E nem ele próprio sabe já sequer
O que fazer da parte excedentária,
Ao lucro que lhe rendem os silêncios das árvores,
Aos corpos ressequidos dos santos,
À sede interminável dos caminhantes;
Sobra tanto deus a deus
Enquanto tu vais coleccionando noites despovoadas
De anjos
Ou então minguadas zonas despertas do sonho;
Sobras-te tu também tão pouco a ti
Que não sabes agora como saldar tuas dívidas por um poema que ninguém garante sequer
Se virás ou não algum dia a terminar.

31
Há mortos que ficam a meio
Ou porque não sabiam como ultrapassar os estádios últimos do ser
Ou simplesmente por não terem cumprido a única cláusula irrevogável de um contrato celebrado por ambos.
Mas há vivos que também ficam a meio,
De quê ninguém sabe
32
Morrer é apenas o tempo concedido à morte
Para te fechar os olhos e voltar a abrir-tos
Em outro lugar;
Alguma vantagem haverá porém em morrer
De olhos abertos,
Não se há-de ela afadigar tanto a abrir-tos
E em esse outro lugar voltar a fechar-tos.
53
Meio-dia:
A sombra do fruto tem agora
O mesmo sabor do fruto.

Tapiès
Conter sem possuir,
Encher-me do teu nada até transbordar do meu.
Tapiès
59
Acabaste a preferir a vida a ti mesmo
Com essa mesma naturalidade de estarem as árvores ainda
No seu lugar apesar de uma inadequação em altura
Para o amadurecimento dos pássaros.
Dizias então:
A vida está hoje no seu lugar
Menos os nossos corpos em avançado estado de graça;
O tempo está hoje no seu lugar
Menos o ritmo a que dilatam as nossas veias;
O mar está hoje no seu lugar
Menos os barcos naufragados de uma inclinação brusca
Do pensamento;
As palavras estão hoje no seu lugar
Menos a réplica exacta dos lábios
Ao silêncio apaziguador da pedra;
O deus está hoje no seu lugar
Menos a ossatura inacabada do seu eclipse;
Tu e eu estamos hoje no nosso lugar
Menos os ângulos tumultuados das cicatrizes das rosas sem nome,
Menos a mudez dos nossos corpos em avançado estado de vida.
(Para Yves Namur)

Paul Klee
Cair de joelhos
sobre o nada
de altura maior que a da casa do seu nascimento,
o peregrino:
hoje é o dia de estar a ti
em queda só nua e desamparada,
hoje é o dia de estar ao vento
em remoinho de rosas errantes e vazias;
estar a ti
como ferida em noite agreste e consentida,
estar a ti
como vela ao relento fundo do tempo,
estar a ti
como pão lançado à memória do mar em sua infância,
estar a ti
a flutuar sobre uma vida que demora o olhar
a render a cor de uns olhos,
estar a ti
morrendo devagar ao som futuro dos teus passos,
estar a ti
a nascer descalço sobre o cheiro a terra molhada,
estar a ti
de voz húmile e mais nua que o silêncio,
estar a ti
de pensamento vazio debruçado sobre
veias de pedras e palavras,
estar a ti só contigo
e já sem mim.